:: Esquizofrenia gospel ou o modo de pensar seletivo dos evangélicos ::

Alguém te avisa que a presidente e deputados estão usando aviões da Força Aérea Brasileira para viajar para compromissos pessoais, às expensas do patrimônio público do povo brasileiro, em vez de comprar passagem com o salário que recebem. Alguém te alerta que a presidente e deputados estão comendo em restaurantes caros e pagam a conta com dinheiro de impostos, e não com o salário que recebem. Alguém te comunica que desembargadores, promotores e ministros do TCU, muito bem assalariados, recebem em dinheiro auxílio-aluguel, mesmo quando já possuem casa própria.
São todos fatos reais, que aconteceram e acontecem em nosso país. Diante do alerta e do conhecimento genérico desses fatos, o que você faz?
Como dever cívico e ético de combate à imoralidade, à amoralidade e à corrupção, você provavelmente toma uma ou mais das seguintes atitudes: se possível, você tenta conversar com os envolvidos e dissuadi-los de suas práticas, você avisa aos órgãos de fiscalização, corre atrás da informação, alerta à potencial vítima (o povo), você conversa com seus amigos sobre, você compartilha no facebook, e talvez até vá pra rua protestar. No mínimo, você faz um panelaço! Afinal, o dinheiro do povo não pode ser usado de forma leviana e espúria, para financiar interesses pessoais de quem quer que seja. O povo merece a verdade e a transparência do que está sendo feito com o seu dinheiro.
Agora, se o líder religioso da sua igreja, que já recebe um  salário bem acima da média, está usando, em vez do seu carro próprio, o carro e a gasolina da congregação para se locomover e viajar em compromissos estritamente pessoais; se está levando as notas fiscais dos restaurantes onde almoça e de diversos outros gastos pessoais para a igreja pagar; se recebe auxílio-aluguel em dinheiro das verbas da igreja, mesmo já possuindo casa própria... Tudo isso na surdina. O que você faz?
Como "servo bom e fiel", você não faz nada, guarda tudo pra si, não fala sobre o assunto com ninguém, tampouco tenta dissuadir os líderes envolvidos, não alerta ninguém, não corre atrás da informação, pois cada um vai prestar contas dos seus atos perante Deus. Ou, se tenta tomar algumas dessas atitudes para se posicionar contra práticas desse tipo ocorridas dentro da igreja, os líderes envolvidos e boa parte dos seus irmãos te acusam de fazer fofoca e gerar contenda, o que não edifica em nada e ainda atrapalha a evangelização! Ou seja, o panelaço nas igrejas é às avessas: é para manter a ignorância e a amoralidade! Os fiéis não precisam saber como é destinado e o que é feito com o dinheiro que ofertam para a obra de Deus. Isso é responsabilidade dos líderes perante Deus. O fiel já fez a sua parte ao ofertar - e isso basta!
Percebe a contradição? Percebe a alienação? Existe uma "esquizofrenia gospel" profunda no mundo evangélico tupiniquim. Um modo de pensar seletivo, bipartido e altamente pernicioso, que só contribui para mais palhaços tomarem conta do circo em que já estamos vivendo.
Veja: enquanto perante o governo ser um bom cristão e cidadão é cumprir o dever cívico e ético de tomar atitudes proativas de combate a suspeitas de imoralidade, amoralidade e corrupção, perante líderes religiosos, ser um bom cristão e cidadão é fazer exatamente o oposto! Em um caso, com o meu dinheiro - com o dinheiro do povo e para o povo - ser um bom cristão é dissuadir, é agir, é alertar, é combater. No outro, com o dinheiro que nos é confiado por Deus e ofertado para sua obra, ser um bom cristão é se omitir e se alienar... ou, no máximo para os "muito corajosos", é ir conversar com os líderes e sair isolado e em silêncio sob a acusação de ser fofoqueiro.
Os argumentos utilizados para defender essa esquizofrenia são os mais curiosos e variados: "Tem tanta gente morrendo. Vamos amar as pessoas e ajudar o pobre, em vez de fazer fofoca com bobeiras que não edificam!", "A máxima do evangelho é o amor, não a discussão e a contenda. Temos que ser mansos!", "Em seus passos, o que faria Jesus? Certamente não iria agir assim! Ele quer paz", "deixa pra lá. Olhe pra Jesus, não para homens. Pastores têm uma responsabilidade especial e serão cobrados por Deus por tudo que fizerem", "Não se pode falar sobre problemas da igreja para incrédulos, seja pessoalmente, seja por facebook. Pois falar abertamente sobre os problemas que existem na igreja não ajuda em nada e ainda atrapalha a evangelização dos perdidos".
Será?
O argumento do amor e da mansidão é muito bonito e necessário, mas amor e mansidão também identificam e disciplinam o erro. Amor cego não é amor, é doença. Mansidão sem firmeza de posição e de convicção não é mansidão, é covardia. Desde quando amor virou sinônimo de complacência irresponsável? Desde quando mansidão virou sinônimo de omissão? Desde quando amar o próximo e ajudar o pobre me isenta da responsabilidade moral de lutar pelo que é justo é certo inclusive dentro da igreja?
Mansidão não é sinônimo de ser idiota, muito menos de baixar a cabeça pra tudo o que os "papas evangélicos" falam e fazem.  Ser cristão não é sinônimo de ter a mente cauterizada. Se tivéssemos cristãos mais corajosos e cônscios de suas responsabilidades não apenas SOCIAIS, mas também MORAIS, não veríamos esse circo cheio de atrocidades e imoralidades que se instaurou em nosso meio, inclusive em igrejas históricas. Socialmente, devemos sempre tentar cumprir o nosso papel. Moralmente, também.
Você e eu temos o dever e a responsabilidade de conversar em amor com líderes nossos que venham a praticar atos amorais e imorais. Afinal, pastores também são ovelhas, e, como tais, também podem se perder e carecer de um direcionamento sensato e sóbrio. Mas não são todos os líderes que estão abertos, quando necessário, a serem tratados, aconselhados e corrigidos - infelizmente. Uma boa parte deles ainda vai te tratar como fofoqueiro e citar meia dúzia de versículos bíblicos fora de contexto para defender suas práticas e continuar no erro.
O argumento que diz que alertar e denunciar abertamente o erro atrapalha a evangelização e afasta os incrédulos de Deus, sem dúvidas, é o mais curioso. A proposta, em outros termos, é a seguinte: não vamos mais alertar e falar sobre as amoralidades, imoralidades e corrupções que acontecem nas instituições governamentais do nosso país, porque se não todos vão perder o encanto pelo Brasil e ninguém mais vai querer conhecer as belezas que aqui existem. É importante que o Brasil tenha sempre uma imagem positiva para os de fora, para que o país possa receber investimentos externos e crescer. Vamos tapar os olhos para tudo o que acontece de errado na nossa terra, não vamos alertar sobre nenhuma mazela, vamos fingir que está tudo moralmente correto, pois o importante é alcançar turistas e investimentos. Certo? Espero, sinceramente, que a maioria dos brasileiros responda que não, que não está nada certo, pois a corrupção é sempre perniciosa e, como tal, deve sempre ser combatida, onde quer quer ela se encontre. Se for necessário um impeachment da presidente democraticamente eleita para estancar a corrupção, ainda que a imagem da nação fique desgastada diante das tristes verdades, que haja. A verdade sempre liberta. A mentira sempre aprisiona.
Pois bem. Desde quando tapar os olhos para a hipocrisia interna da igreja e não falar abertamente sobre elas virou estratégia de evangelização? Igreja não deveria ser empresa, pastor não deveria ser empresário e ovelha não deveria ser cliente. Igreja não é empresa para viver de propaganda e marketing. O marketing de Jesus Cristo sempre foi o anti-marketing. Sua mensagem não era atrativa e convidativa o suficiente para conquistar multidões. Ele não escondeu erros e farisaísmos da elite religiosa dominante para alcançar vidas. Se Aquele que é o caminho, a verdade e a vida não maquiou a essência da boa notícia para atrair mais seguidores, por que iria eu querer alargar uma porta que já e, por si mesma, estreita?
Eu penso exatamente assim. Alertar sobre as mazelas que vejo e vivencio dentro do mundo evangélico - ao contrário do que muitos pensam - abre portas para a disseminação do verdadeiro Evangelho. Isso mesmo! E por várias razões. Explico.
Primeiro, porque o que realmente atrapalha a evangelização é o senso comum entre os incrédulos de que crente é sempre burro, alienado e alvo de lavagem cerebral feita por líderes astutos que querem roubar seu dinheiro. E defender amoralidades como essas dentro da igreja ou se omitir em relação a elas apenas contribui para aumentar ainda mais esse preconceito já estabelecido. A maioria das pessoas simplesmente não está mais disposta a ouvir ou a dar crédito a um alienado falando sobre sua fé em Cristo.
Segundo, porque reconhecer e combater amoralidades internas causa uma estranheza e uma curiosidade sadias sobre os que estão de fora: "Peraí, você é evangélico, mas não concorda com o que muitos deles estão fazendo? Me explica melhor isso!". Se posicionar contra amoralidades internas abre portas não apenas para falar de Jesus, mas para mostrar Jesus agindo e ser um pequeno Cristo diante de injustiças sociais e morais, inclusive aquelas que ocorrem dentro dos "Templos de Salomão" modernos
Terceiro, porque se o de fora um dia entrar numa igreja, ele já entra ciente de que não é um clube de santos e imaculados. E isso permite apresentar a graça genuína de Cristo mesmo diante da natureza pecaminosa do homem. Ao reconhecer que cristãos não são santarrões, mas sim simples pecadores resgatados, sujeitos a erros e acertos, posso dizer ao incrédulo com convicção: "Não somos salvos porque fazemos o bem, mas fazemos o bem porque somos salvos. Não são os nossos atos bons que nos salvam, nem os nossos atos maus que nos condenam. Não somos tratados e amados por Deus com base no que fazemos, mas com base no que Cristo fez por nós. Porque se Deus fosse levar em conta o que fazemos, estaríamos todos condenados. Cristo nos ama e nos salva apesar de nós mesmos e das nossas mazelas. O amor de Deus pelo ser humano não é cego! Isso, sim, é Evangelho.
Quarto, porque é a verdade, e não o engano, que sempre liberta. E lutar ao lado da verdade ajuda a desfazer preconceitos, a transformar corações e a mudar a mente das pessoas. 
Quinto e último, porque é o Espírito Santo que convence do pecado, da justiça e do juízo, e todo aquele que o Pai dá ao Filho dele sempre se aproxima, e de modo nenhum é lançado fora. Foi o próprio Bom Pastor quem disse: "as minhas ovelhas ouvem a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem. Eu lhes dou a vida eterna; jamais perecerão, e ninguém as arrebatará da minha mão. Aquilo que meu Pai me deu é maior do que tudo; e da mão do Pai ninguém pode arrebatar". 
Portanto, vamos parar de usar usar a Bíblia ou jargões evangélicos pra defender absurdos. Usar a Bíblia de acordo com a conveniência é baixaria gospel revestida de verniz de espiritualidade. Quando é conveniente, nenhum líder religioso cita Jesus virando tudo de cabeça pra baixo no Templo ou João Batista denunciando reis e fariseus. Ninguém vai citar 1 Co 11.19 e tantos outros casos bíblicos. Teriam Jesus, João, Paulo e tantos outros incentivado a fofoca, a contenda e abandonado o amor e a evangelização? Todos eles sabiam amar o próximo, mas todos eles também sabiam identificar o erro e combatê-lo. Todos eles sabiam que uma atitude não exclui a outra, mas, pelo contrário, podem - e devem - caminhar juntas.
Não vamos mais deturpar aquela linda frase: "Em seus passos, o que faria Jesus?" diante de fatos amorais e imorais como os que temos vivenciado na igreja brasileira. Eu te pergunto: você realmente acredita que Jesus manteria um quadro de mentira, amoralidade e ignorância dos que Ele ama para haver uma suposta paz e um resultado melhor na evangelização? Foi isso que Ele fez com o sistema religioso doentio e farisaico vigente na época? 
Não vamos mais usar o jargão "isso não edifica em nada!" para alertar e falar abertamente sobre fatos amorais. Pois fatos amorais são, em si mesmos, sempre não edificantes, e alertar e se posicionar contra algo não edificante sempre edifica a quem tem ouvidos pra ouvir e olhos para ver. Se o pastor usa o púlpito para criticar e mandar recado para outro pastor, inclusive citando nomes, é edificante e permitido. Se você fala, escreve, alerta e conversa abertamente sobre fatos amorais ocorridos na igreja, citando ou não nomes, é fofoca e abominável. Mais coerência, por favor!
Essa forma bipartida e esquizofrênica gospel de pensar nada mais é que uma triste e dissimulada forma de CENSURA, que só contribui  para fortalecer o senso comum de que evangélico - as palavras não são minhas! - é uma cambada de alienado e burro que dá dinheiro pro pastor, sem fazer qualquer juízo crítico e de valor. Essa esquizofrenia é que seria capaz, isto sim, de atrapalhar a evangelização - se é que há de fato algo com esse poder.
Que, como cristãos, possamos aprender a ouvir críticas, debater ideias, enfrentar fatos e combater a injustiça onde quer que ela esteja - seja dentro ou fora da igreja. Do contrário, a suposta paz que haverá em nosso meio será, no máximo, paz de cemitério. Estaremos todos mortos, celebrando a vida, mas brindando a morte.


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